Hórus e o Nazareno, um conto de final de Ano.
Por esses dias, a voz desincarnada e onipresente de Simone se fez presente quando eu menos esperava, anunciando a chegada do final de ano e todas as festividades que o acompanham, que parecem se resumir a encontrar gente da família que se faz questão de fingir que não existe durante o ano e comer uma tonelada de comida. Ah, Simone, arauta de rituais sociais estranhos – chegou mais uma vez aquele momento, não é mesmo?
Enquanto passo um café colombiano, tiro o pó de uma cartela de bingo que tenho para esses momentos, consulto meu instagram e rapidamente completo uma linha no bingo da ignorância: Pagão dando “feliz natal” pra outros Pagãos, reconhecendo o frankenstein de Nazaré como Deus vivo, e repetindo toda aquela groselha do filme “Zeitgeist” como se fosse um grande segredo revelado.
Certas coisas não mudam, não importa quanto tempo passe. Balançando a cabeça, lembro das palavras do bom velhinho: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”1
E a verdade é que cada vez menos os homens e mulheres desejam se educar. Ou o conhecimento vem de forma pré-digerida, entregue na sua porta, instagramável – ou ninguém se interessa. O importante é escolher um texto qualquer, bonitinho, de preferença ecumênico – quanto menor melhor – uma imagem fofa, e sair postando pra bancar a pseudo-sapiência. Checar a veracidade do texto é completamente opcional.
Lembra muito o comportamento de uma galera que achava que vacina causava autismo e aids e vinha com chip de 5g de brinde, não? Pois é. Hoje decidi escrever um pouco sobre essa balela de que “Horus nasceu em 25 de dezembro” que tanta gente gostar de zurrar, como se isso emprestasse validade pra Hórus (como se precisasse!) ou tornasse mais palatável a história do Zumbi da Cananéia (não, obrigado – como já dizia a saudosa Rita Lee).
De acordo com evidências arqueológicas, o calendário anual egípcio, adotado por volta da metade do terceiro milênio a.C., consistia em 365 dias2. Os primeiros 360 dias do ano eram divididos em 12 meses de 30 dias cada e os cinco dias restantes formavam seu próprio mês em separado, que ocorria entre o final do 12º mês e o início do 1º mês do ano seguinte. Cada um dos cinco dias intercalares era comemorado como o aniversário de uma das cinco divindades egípcias: Osíris, Hórus, Set, Ísis e Néftis. Isso efetivamente coloca o aniversário de Hórus no 32º dia do 12º mês do calendário egípcio. Essa informação já é o suficiente para “desmontar” essa lenda lendária de que o aniversário de Hórus é em 25 de dezembro – mas continuemos.
Quando o calendário anual egípcio foi implementado pela primeira vez, o primeiro dia do ano novo caía no primeiro dia da ascensão anual de Sirius (chamada de “Estrela do Cachorro”) no horizonte. Os especialistas não têm como saber exatamente em que ano o calendário foi adotado pela primeira vez, mas o comportamento de Sirius no céu é muito semelhante à posição do sol em relação à Terra – portanto, o primeiro dia do ano no primeiro ano do calendário civil quase certamente teria ocorrido em 16 de julho do calendário juliano (usado pelos antigos romanos, e baseado no calendário egípcio pós 238 a.C.). De acordo com nosso calendário gregoriano moderno, isso seria em algum momento entre 20 e 30 de julho.
Lembremos que o calendário egípcio não tinha anos bissextos, portanto, ele se “atrasava” em um dia a cada quatro anos. No primeiro ano de sua adoção, o “aniversário” de Hórus teria sido comemorado por volta de 12 de julho, de acordo com o calendário juliano. Quatro anos depois, ele seria comemorado hipoteticamente 11 de julho. Quatro anos depois disso, 10 de julho – e por aí vai. A cada 1.461 “anos egípcios” (ou seja, 1.460 anos julianos3), o Ano Novo egípcio coincidia, mais uma vez, com o surgimento anual de Sirius em meados de julho. Essa duração é conhecida como ciclo Sótico.
Então, de onde filmes como Zeitgeist tiraram a ideia de que Hórus nasceu em 25 de dezembro (que não seja o IMC)?
De acordo com a própria bibliografia de Zeitgeist, isso se deve ao trabalho da escritora Dorothy Milne Murdock, que apresenta sobre a origem de Jesus que foram, em uníssono, rejeitadas por seus pares no ambiente acadêmico, sendo seus textos descritos como “(…) repletos de tantos erros fatuais e afirmações bizarras que é difícil acreditar que a autora esteja falando sério.”4 , e a própria autora como “(..) sem qualquer senso noção de realidade, incapaz de fornecer referências, incapaz de interpretar corretamente fontes primárias, possuindo a necessidade de emprego de fontes secundárias desatualizadas e imprecisas em vez de evidências primárias5“. Eu poderia prosseguir apresentando diversos temas abordados no filme que não passam de puro suco de teoria da conspiração, mas acho que esse breve texto já dá uma ideia da “seriedade”da fonte.
Ah, sim. Quando questionados sobre as suas fontes, a equipe do filme disse: “…mas sendo o calendário sem uso de anos bissextos, EVENTUALMENTE o aniversário de Hórus cairia no 25 de dezembro…”. SIM, os caras deram como desculpa o “até relógio parado tá certo duas vezes ao dia” para uma afirmação que tem um acerto e 364 erros.
Por isso, povo dos Antigos Deuses, não saiam postando por aí coisas que não conhecem: Podem estar postando a versão religiosa do “vacina dá autismo”.
Referências:
- FREIRE, Paulo – Pedagogia do Oprimido, 1987. ↩︎
- pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_eg%C3%ADpcio ↩︎
- NORTH, John – The Norton History of Astronomy and Cosmology ↩︎
- EHRMAN, Bart D. – Did Jesus Exist?- 2012 ↩︎
- CASEY, Maurice. Jesus: Evidence and Argument or Mythicist Myths?. T&T Clark. pág. 288, 2014. ↩︎
Advogado, tradutor, carioca, 48 anos e morador de São Paulo. Há quase vinte anos atrás, sacerdotes e sacerdotisas me levaram para um templo entre mundos e me trouxeram de volta à vida – desde então, entre o staccato dos trovões, o tilintar de taças e um coral de risos eu faço meu ofício e desempenho meu papel entre os filhos dos Deuses Antigos.