Réquiem para um sonho
Ontem, de além das brumas, um irmão de outras paragens encaminhou a mim um texto. Sumariza de maneira ímpar a casa que gerou a mim e outros tantos Dragões. Reproduzo-o abaixo por uma questão sentimental, como auto-referência, e porque acredito que o legado dos mais antigos e sábios que nós se encontra ali adequadamente reproduzido.
Aos que Caminham por AvalonDas Sombras de onde viemos e onde aguardamos.1
1 Este não é propriamente um manifesto místico. É tão somente uma carta de intenções, uma infusão de valores, um mapa e um archote, na forma mais adequada a um mundo onde homens pensam serem deuses sem compreender o poder por trás dos próprios atos. Aqui falamos um pouco do que acreditamos, para que você saiba que não está só e que existem outros a quem procurar na Noite Escura, quando a saudade de lugares nunca vistos em um passado que nunca aconteceu assolar o seu coração.
Sangue por Sangue, Coração por Coração.
Nós falamos de Magia, de religião, de vidas que se cruzam para celebrar e cultuar os Deuses Antigos. Tratamos de um modo particular de ver e viver a Arte com dignidade, compostura e alegria.
Não estamos interessados em alimentar modismos, nem dar combustível para brincadeiras. Tampouco estamos interessados em criar espaço para fantasias.
Não encorajamos a massificação da Velha Religião, nem simpatizamos com o proselitismo dos profissionais esotéricos. Mas se a Deusa é a sua prioridade então aqui encontrará algumas informações para que o caminho, que é sempre solitário, possa lhe conduzir a um sacerdócio decente.
Nós tratamos de Amor e tratamos de Fé.
A massificação da Antiga religião tem atendido os mais variados interesses, e está entregue amotivações de pessoas ou organizações mesquinhas que ditam as regras e quebram-nas quando lhes interessa sem nenhuma coerência, sem pudores, ao sabor dos ventos e das marés do próprio humor.
O “verdadeiro pagão” não se define por ações de liberação sexual, ativismo social ou ecológico, muito menos por capacidade intelectual ou pela profundidade do seu “trabalho sombrio”. Ele se define em compromisso, seriedade, devoção e fé nos Antigos.
Não temos grandes templos nem movimentadas listas de discussão ou websites. Não fazemos atividades ritualísticas públicas, encontros sociais, acampamentos ou retiros abertos. Sequer estamos interessados em saber quantos somos. Somos errantes e vagabundos, dançarinos ocultos no oculto da Noite. Nosso prêmio é o silêncio, nossa benção o esquecimento, nosso espírito é o Mistério.
Estamos nas sombras, longe dos holofotes, onde é nosso lugar. Das Sombras e Pó de onde saímos erguemos nosso canto apenas pra fazer saber a quem tiver ouvidos: Estamos aqui e dizemos: -Os mistérios perduram! Ocultos, velados, guardados, selados! Avalon vive! Quem desejar caminhar em nossa senda que tenha coragem de fechar os olhos e ver o que foi escondido.
Os Deuses partilham conosco sua divindade, uma vez que partilhamos com eles em sinceridade e amor. A eles nos dirigimos e a eles devemos erigir nossos altares, não a nós mesmos, não à nossas conquistas, não aos nossos egos feridos.
Vivemos e buscamos viver nossas vidas com Liberdade, Verdade, Lealdade, Honra, Responsabilidade, Amor e Serviço aos Deuses, Família, Humildade, Compaixão, Cortesia, Generosidade, Alegria, Bom-Combate e Nobreza no Espírito e nas Ações.
Muito do que representam estes valores foi esquecido ou negligenciado pelos homens e mulheres contemporâneos, de todos os credos. Foram abandonados entre muitos neopagãos sob alegação de que constituem “resquícios de cristianismo” ou “arcaímos” incoerentes com a prática religiosa moderna.
Sabemos que estes valores expressam qualidades inerentes ao ser humano em dimensão espiritual, transcendendo a esfera das religiões e habitando uma esfera “superior” de compreensão. Por isso, pagãos de diversas sociedades cultivaram estes valores da mesma forma que hoje fazem religiões como o cristianismo, o budismo ou o hinduísmo. Eles expressam a compreensão humana de que o homem necessita do homem e eleva-se espiritualmente ao conviver com ele.
A ausência destes valores na atual sociedade “pós-moderna” centrada no “ego-eu”, com foco no ateísmo ou no esoterismo irresponsável (onde tudo é válido em nome do autoconhecimento) proporcionou comportamentos nefastos que proliferam em nome da liberdade e direito deste “eu”, esquecendo a importância do “outro” e usando-o como uma escada para alimentar o próprio ego.
Não há incoerência em ser pagão e não ser um militante social ativo, ou ser pagão celibatário, ou pagão não-ecologista, ou pagão-qualquer-outra-coisa. Bem como não há incoerência em adotartodas estas posturas político-sociais.
Há incoerência em ser pagão e não nutrir amor aos Deuses, em não acreditar Neles, em não celebrar seus cultos com devoção e Fé. Há incoerência em ser pagão “eternamente estudante”, mas nunca praticante, e só ter ao paganismo palavras de crítica e censura.
A Bruxaria chegou aos nossos dias, de uma forma bela e sagrada, graças aos esforços de um povo simples, de uma fé quase ingênua. Chegou não, foi arrancada das sombras para que a humanidade pudesse preencher um vazio que a saudade das noites encantadas deixava nas almas das mulheres e homens de corações mágicos.
Trouxe em seu alforje um modo honrado e virtuoso de compreender a língua das fadas, o canto das sereias, o pio das corujas, os uivos dos lobos na Noite Infinita. Presenteou-nos com um dom quase esquecido: o de voarmos livres e altivos, como dragões, por sobre os desertos da vida profana.
Sua Lei, simples e clara, ensina a fazer o que o coração pedir sem a ninguém prejudicar. É tudo que precisamos para sermos felizes, honrar e prestar culto aos Antigos. Essa é a Lei, é toda a lei que juramos obedecer. Isto é simples, mas de difícil entendimento para os que hoje trilham o Velho Caminho.
Muita discussão se fez sobre o assunto, como se fosse imperioso que alguém explicitasse o que significa prejudicar outro alguém. Quando somos nós a parte prejudicada sabemos apontar com uma certeza draconiana, mas quando são os outros que choram e gemem por um ato nosso, é preciso uma explicação:
A cada vez que algum pagão descrever com escárnio e cinismo o sagrado do outro pagão está prejudicando; quando alguém pede ajuda para começar a entender os Antigos ou para se livrar da propaganda preconceituosa sobre nossos Deuses e práticas e além de não darmos uma explicação o tratamos com ferocidade e desprezo, estamos prejudicando; sempre que nossa visão se coloca acima da visão do outro e o obrigamos a ver com os nossos olhos, estamos prejudicando; sempre que nosso conhecimento for usado para escravizar a fé e o coração do outro, estamos prejudicando; sempre que nossos atos colocarem em descrédito ou em situação de desconforto outro praticante da Arte, estamos prejudicando; sempre que a mentira for elevada ao status de “objeto mágico”, estamos prejudicando.
Há muitas maneiras de cultuar os Antigos. Tradições e mais Tradições, umas rígidas, outras liberais. Há o Caminho Solitário com ou sem tradições, e o caminho dos que dançam juntos; a Iniciação tradicional, o caminho não iniciático, a auto-iniciação; A Bruxaria, o Druidismo, a Magia Cerimonial, oreconstrucionismo; No fim há apenas o Adormecer e o Despertar. E deve haver um espaço onde o Conhecimento seja tratado como um legado dos deuses à humanidade, e não como moeda de escambo.
Não há sabedoria em afirmar que um ou outro caminho, ou forma de entender um caminho seja: “lamentável”, “uma irresponsabilidade”, ou demais cacoetes do autoritarismo invejoso. Aqueleque entendeu o que encerra este termo: Caminho – saberá ouvir a voz dos encantados. Saberá que a Magia brinca de escapulir das regras que inventamos para aprisioná-la em nossos cofres pessoais. Sabe distinguir entre o que é limitação espiritual e o que é uma regra de sobrevivência.
Filósofos e sacerdotes de diversas eras: de pitagóricos e estóicos a hedonistas, de vestais e eunucos a bacantes, de ermitões e xamãs a flâmines e druidas, egípcios, mesopotâmicos, cretenses, gregos, romanos, celtas, germânicos, eslavos, polinésios, africanos, astecas, incas, maias, indianos, chineses, japoneses, nativos australianos, indígenas (norte, centro e sul) americanos e todos os outros povos que viveram e ou ainda vivem em diversas sociedades de espiritualidade pagã, nos apresentam variadas formas de viver a religiosidade, todas elas sagradas, todas elas dignas de celebração e agradáveis aos Deuses.
Nisto, sabemos que nossos valores são atuais e necessários na sociedade em que vivemos. E que são plenamente aplicáveis às nossas vidas, uma vez que deles tenhamos a correta compreensão, e não uma visão estreita e anacrônica. Eles precisam ser vividos e praticados na realidade e não apenas no discurso ou no mundo das fantasias.
Nossa linhagem nasceu por três Pórticos. Hoje há apenas um Umbral, mas continuam existindo diferentes graus. Os graus representam etapas de crescimento espiritual e compreensão que o caminheiro precisa passar para compreender o sacerdócio.
A Deusa em nosso amor é Tiamat, Mãe dos Dragões e Senhora da Lua. Seu consorte é Apsu, regente da Caçada Selvagem e dos submundos. Eles são cósmicos e universais, complementares e completos, mas caminham com os Ancestrais, com O Portador e A Peregrina, com as Potências e Principados, Hostes e Falanges, e com os deuses íntimos que dançam nos altares.
Louvamos sacerdotes que se relacionem com a Teia, conscientes das responsabilidades que todos temos. Tudo que fazemos ou deixamos de fazer tem conseqüências para os que nos cercam, e este é o sentido real de estarmos ligados. Por isso, devemos fazer dos nossos atos gestos que fortaleçam nossas relações uns com os outros, diante do que é certo e para o bem de todos: pessoas e sociedade.
Nosso caminho tem quatro atributos: é religioso, draconiano, iniciático e neopagão. É um caminho religioso porque o ponto central dele é a Fé e o culto aos Deuses. É draconiano porque para nós importam as leis, a ética, a honra e a verdade. É Iniciático porque é de Mistérios que se faz nossa senda mágica. E é Neopagão porque acreditamos na força que emana da Terra, na diversidade dos Deuses e Deusas e na ligação existente entre todas as coisas: a Teia.
Nossos espíritos são livres para ir ou vir, aceitar ou rejeitar presentes e convites, caminhar solitários, em bando ou em turba. Nossa casa é o Céu Estrelado e nosso limite o próprio caminho.Dançamos ao redor da Chama Ancestral e invocamos os guardiões do fogo perpétuo. Nenhum Lar sobre nossas cabeças haverá senão a Avalon Viva, cujo mundo nós só vemos pelos olhos de Outro.
Não apoiamos posturas sectárias de grupos que induzem neófitos, sob quaisquer alegações, a rupturas entre pais e filhos, cônjuges, familiares, e de relações profissionais, convencendo-os em sua doutrinação a realizarem atos e práticas contrárias às suas próprias naturezas e que lhes violentam física, espiritual e psicologicamente.
Como religião, acreditamos no religare, em unir e integrar mulheres e homens entre si, aos Deuses e ao mundo onde vivem, estimulando uma relação positiva e construtiva com a sociedade, com as leis e com os deveres enquanto cidadãos de um Estado Democrático.
Dragões nascem sozinhos. Nascem do fogo, da água, do ar ou da terra. E aprendem a voar sozinhos, e a cuspir fogo, caçar, encantar. Nascem da força de vontade de transcender a existência humana. Ao nascerem, o dinheiro e a fama viram coisas secundárias, pois dragões vivem nas sombras, são arredios aos holofotes, hoje esta verdade é mais que vívida e as lições do porque ficaram marcadas no espírito com a clareza da Lua Cheia.
Depois de anos de neopaganismo no Brasil, muitas autoridades em história da Bruxaria Moderna surgiram nos meio cibernéticos. Cada uma delas afirmou seu conhecimento sobre a vida e as realizações de Gerald Gardner, Margareth Murray, James Frazer, Marija Gimbutas, Aleister Crowley ou quaisquer outros poderosos místicos-magistas-antropólogos-ocultistas a quem atribuíssem influências de maior importância para responder de onde o neopaganismo surgiu.
Esses “pesquisadores” também fizeram balanços – orientados para seus interesses acadêmicos ou políticos – sobre a evolução da Wicca desde seu surgimento na Inglaterra da década de 50 passando por sua migração para a América, suas influências do dianismo e da psicologia, a relação com os movimentos sociais feministas, gays, hippies e de minorias em geral.
Somaram considerações sobre o movimento neopagão romântico do século XVIII e as religiões de mistérios da Antiguidade ou criticaram as relações fantasiosas da bruxaria moderna com a “sociedade matriarcal ideal do passado”, que nunca existiu, mas que continua associada aos cretenses, aos celtas, aos “atlantes” ou a algum povo neolítico perdido no tempo.
Cada uma dessas autoridades usou suas credenciais da melhor maneira que conseguiu para validar seu ponto de vista: historiadores, filósofos, filólogos, estudantes, mestrandos, doutorandos, pesquisadores com 2, 5, 10, 30 anos de atividade criteriosa e dedicação.
O resultado de tudo isto pode ser encontrado na Internet, em alguns livros editados aqui e em muitos editados no exterior e em dezenas de workshops espalhados pelo país. Para nós, entretanto, a importância desta questão é menor, muito menor. O que realmente importa não é o que se sabe. Tal o mostra aquele que aprendeu o que sabiam seus irmãos e terminou exilado na Lua.
Temos consciência do romance e fantasia das versões que repetimos sobre nós próprios. Para nós a Bruxaria surgiu do amor à Mãe Natureza nos corações humanos, e a forma como contamos esse surgimento é para falar ao espírito e não à mente racional.
Não teremos, queremos ou daremos respostas. Sequer ensinaremos sobre as razões e os porquês. Não revelaremos como se organiza o cosmo ou quantos são os Reinos do Espírito, nem qual força tem cada planeta ou esfera da Grande Árvore. Toda Tradição é uma conselheira e cada ser é livre para decidir e saber, na sua própria medida e necessidade.
Não estamos aqui pra distrair ou atrasar os caminheiros ao longo do caminho. O Saber está disponível pros que buscam. O que sabemos é uma forma de caminhar em qualquer caminho, dignidade, que somente serve àqueles em cujo espírito se alimente na Chama da liberdade.
Através da observação os ancestrais recriaram de forma ritualística os fenômenos da Vida, da Morte e do Renascimento, ilustrados pelos ciclos sazonais e pelo ciclo lunar. A interação com essa realidade sob um prisma mágico propicia um entendimento que transcende a lógica cartesiana.
É um saber mágico, que não carece de malabarismos intelectuais e teses acadêmicas. E como todas as religiões, o Culto nasceu da mente humana. Nasceu da interpretação de um arquétipo e do reconhecimento de uma divindade real e imanente.
E Avalon?Avalon continua oculta em suas brumas, distante do mundo das coisas comezinhas e banais. O caminho permanece secreto, mas se revela aos que conhecem os Mistérios Antigos.
Avalon é onde o Vento Selvagem sopra, onde as Nove cultivam as macieiras e os Irmãos Maiores pousam em suas pedras. Lá o Povo pequeno dança nos círculos sagrados enquanto o tempo não passa. E aos que vencem os desafios em Avalon aguarda um banquete partilhado em Amor.
Avalon é aqui e lá, o mais próximo que um Dragão terá como lar. Avalon é a Ilha perfeita, pelo qual marcamos em fogo o Sagrado Elo. De lá viemos e para lá voltaremos, e defenderemos a Senhora de nossos dias e noites até o fim, nas sombras onde aguardamos. Conosco não caminham perjuros.
Solstício, março, 2011 desta Era Comum
Advogado, tradutor, carioca, 48 anos e morador de São Paulo. Há quase vinte anos atrás, sacerdotes e sacerdotisas me levaram para um templo entre mundos e me trouxeram de volta à vida – desde então, entre o staccato dos trovões, o tilintar de taças e um coral de risos eu faço meu ofício e desempenho meu papel entre os filhos dos Deuses Antigos.
Que lindo texto, emocionante. Feliz pela oportunidade de ler e degustar cada palavra.