Da importância da dedicação.
O termo dedicação, na bruxaria brasileira, costuma ser sinônimo do processo de admissão de um bruxo em uma tradição de bruxaria, onde o mesmo irá conhecer melhor a tradição escolhida, e por sua vez esta irá avaliar o candidato em busca de valores e características semelhantes aos da casa. É um momento único e frágil, que acaba sendo tão importante que geralmente “colore” toda a vida mágica do bruxo.
Conheço bruxos que tiveram uma dedicação extremamente fácil, e não perduraram no caminho da bruxaria. Conheço bruxos que passaram por algo semelhante à uma inquisição, e acabaram por se tornar cruéis. Não existe uma fórmula “correta”para a dedicação: Como todo processo iniciático, tem que ser moldado pela realidade única do dedicado, interagindo com os valores e rituais da Tradição escolhida. Esta sinergia, esta alquimia, não é uma receita de bolo – é uma arte.
Alguns ingressam nas tradições vindos de outros caminhos, ou depois de uma prática como solitários. Outros, tem neste caminho seu primeiro contato com a Bruxaria. De uma maneira ou de outra, este contato se torna o abrir de uma porta, um desvelar de consciência para aqueles buscam uma maior compreensão dos caminhos dos deuses Antigos.
Há um antigo ditado que diz: “onde há medo, há poder”. Caminhando por esta linha, podemos dizer que onde há curiosidade, também há poder. Afinal, a magia opera através de vontade e necessidade: Um dedicado é uma folha em branco, uma caixa trancada, um universo em gênese que busca o seu preenchimento com a vida, o universo e tudo o mais. Poucas necessidades no mundo de Gaia são mais imperativas que o impulso evolucionário, e como o que há acima, há abaixo.
Uma tradição atenciosa não há de ver o dedicado como um estagiário, ou um calouro. O processo de dedicação é, de certa maneira, comparável ao ato de se abrir uma porta: A tradição oferece a chave, mas quem destranca a porta é o dedicado. Quem descobre, que mesmo após isso, não consegue abrir a porta e ao retraçar seus passos se lembra, com um sorriso feliz, que simplesmente esqueceu de dar um empurrãozinho para abrir a porta, é o Dedicado.
Que esta analogia nunca se perca: O passar dos umbrais é um simbolismo muito mais rico do que aparente ser. Para entrar na vida mágica, de acordo com os valores que pretende abraçar, o Dedicado não pode ficar no vão da porta. Uma vez comprometido com o processo de dedicação, ou adentra sua nova vida ou volta. Não se pode ser um sacerdote apenas quando se convém – ou ficando na porta você irá impedir todo tipo de visita dos Deuses.
Dedicar é um processo semelhante à jardinagem: O jardineiro dedicador deve cuidar para que o dedicado desabroche, sem deixar que o processo deixe de incluir o solo, o adubo, água pelas manhãs e à noite, e a ocasional poda – mesmo que a planta faça cara de nojo para o esterco, tema a tesoura e fique revoltada com o banho frio. Como dizia Siddharta, nem tão tenso nem tão solto.
Não é errôneo dizer que a dedicação ensina, também, ao dedicador. Acredito que todo aquele que já foi responsável, nem que apenas uma vez, pela iniciação de outrém há de relembrar o frio na espinha que sentiu ao se descobrir responsável, mesmo que parcial e temporariamente, pelo desenvolvimento religioso de outro ser humano – sem que se possa colocar a mão no volante e dizer “é por ali!”.
Dedicar é ensinar a voar, em compaixão e severidade. Estar a mais tempo no caminho dos Deuses Antigos não nos dá mais direitos, e sim mais deveres: Temos a obrigação de ser generosos, compreensivos, e antes de mais nada pacientes – afinal, se nossos ancestrais e mestres na bruxaria não o tivessem sido, hoje poderíamos estar sob uma orientação religiosa que talvez não nos completasse tanto.
Advogado, tradutor, carioca, 48 anos e morador de São Paulo. Há quase vinte anos atrás, sacerdotes e sacerdotisas me levaram para um templo entre mundos e me trouxeram de volta à vida – desde então, entre o staccato dos trovões, o tilintar de taças e um coral de risos eu faço meu ofício e desempenho meu papel entre os filhos dos Deuses Antigos.
Nossa, perfeito esse texto.
Que bom que gostou, Percilia!